Sabe quando a amiga fica na frente de casa
conversando com a outra amiga e fala assim: “deixa eu te contar, você viu
que...”. Assim é a vida no interior. Nenhuma tecnologia é capaz de roubar a
segurança que as pessoas têm de conversar, pessoalmente, no portão de casa.
Quem já morou no interior, sabe disso.
E é aquela prosa comprida, sabe? Sem
ninguém para interromper ou um telefone para tocar. No máximo, um café para
deixar o papo ainda mais prolongado. Para mim, isso é mais do que um diálogo. É
uma troca rica de observações sobre a vida. E é também quando a linguagem ganha
novo corpo.
Isso mesmo. Vocês já pararam para
prosear no portão? A linguagem ganha ritmo próprio. Em vez de perguntar: como
vai os filhos, perguntamos da família inteira. E não queremos saber apenas se a
pessoa foi hospitalizada, mas quantos dias ficou no hospital; que remédios
tomou; quem visitou o doente. Eu não acho que isso acontece porque,
supostamente, quem mora no interior do Brasil tenha mais tempo do que quem mora
em uma cidade grande, como São Paulo, por exemplo.
Mas, acredito, honestamente, que as
pessoas do interior não inventam desculpas para não se relacionarem. O
trabalho, os filhos, o marido, a aula de natação são importantes sim, mas saber
como estão as pessoas com quem nos relacionamos também é muito importante no
interior. Por isso, elas param para conversar.
E é nesse tempo em que as pessoas se
permitem a trocas, é que surge o que chamo de “uma nova linguagem”. A conversa
no pé do portão não é só legal porque ela é mais “proseada”, mas porque a
linguagem muda. Acho fascinante a maneira como as pessoas fazem adaptações da
linguagem para criar um tipo de dicionário próprio. E acredito que é fácil
visualizar isso mais no interior do que nas grandes cidades. É como se as pessoas
não tivessem vergonha de admitir que elas falam errado ou criam palavras novas
para expressar o que pensam.
E em uma conversa rápida no portão, pude
perceber algumas dessas adaptações. Na região do Norte Pioneiro do Paraná, por
exemplo, as pessoas não "vem" e "vão". Elas dizem “to ino e
to voltano”. Não há a necessidade do “d”. Um desperdício de tempo pronunciá-lo.
Observei também que as adaptações são
feitas para frases de algumas rezas. Você conhece o “malamem”? - alguém me
perguntou. E eu disse: Quem? - O
malamem: “me livre de todo mal, amém”. Caí na risada! E a “Ave Maria, deixa de
graça...”. O que não é a livre interpretação de uma oração?
E você sabe como vai a “fi”? E a “fiinha”?
E o “fiinho”? E o “pamódi”, sabe pra que serve? Também pode ser traduzido como
“para modo de”. “Pamódi di busca fii” leia-se também como “para modo de ir
buscar o filhinho”. E a música que toca na “rádia”?
No Norte do Paraná, além dessa livre
adaptação das palavras, o charme fica por conta do “r” retroflexo. Não é só
fazer um “uso próprio” da linguagem. A pronúncia puxada lembra a de um tempo
que já não existe mais: a da simplicidade. Uma época em que se a porteira estivesse
aberta, bastava você entrar. E se anunciar chegando com um: “oh, de casa”. Sabe
o que ia dizer o dono da casa? – Tarde? Tarde! Bão? Bão! Vim prosear! Viram só,
não foi preciso uma pizza, um vinho chileno, nada disso. Coisas de quem é pé "vermeio".
É do tipo “chega aí” ou “cola em nóis”, como se diz em Londrina.
Se você não é pé vermelho, não se sinta
acanhado. A casa é sua! A linguagem também! Agora para puxar o “r” vai ser
preciso um pouquinho de treino! Quer tentar?
p.s: nem preciso
dizer que sou pé vermelho. Quem é vermelho é quem nasce no Norte do Paraná ou
Norte Pioneiro. E carrega não só o sotaque como também um jeito particular de
prosear. O nome pé vermelho ou “pé vermeio” como é preferencialmente falado, é
dito para quem mora na roça e tem o pé vermelho por conta da cor da terra
daquela região: vermelha! Mas, essa expressão é mais velha que o próprio Norte
do Paraná. Hoje, quase ninguém mora mais na roça, mas o jeitinho de prosear do povo, permaneceu.
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